quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Renovar a democracia brasileira

Há 25 anos, o país realizava a primeira eleição direta para presidente depois do regime militar. De lá para cá, as condições da vida material avançaram e a qualidade da vida política empobreceu. O descompasso preocupa. A rotinização do funcionamento das instituições é
condição necessária, mas não suficiente, para que o regime democrático atinja sua maturidade e dê os frutos que dele se espera. O projeto da democracia exige mais do que eleições regulares e estabilidade institucional. Ela é o governo pelo diálogo, como sugeria Stuart Mill, e requer debate efetivo sobre as decisões que afetam a vida de todos. Temos patinado nessa dimensão crucial.
A capacidade de respeito à alteridade e à composição de diferenças, que foi decisiva para a superação da ditadura e para a melhoria dos indicadores econômicos e sociais, vem gradativamente se esgarçando no país, dando lugar a um sectarismo político cada vez mais tacanho. No centro desse processo de empobrecimento encontra-se uma polarização -- redutora e equivocada -- entre duas leituras de democracia.
A primeira enfatiza a liberdade como o valor central para a vida democrática. Logo após o fim dos regimes totalitários, como ocorreu no Brasil, esse é o elemento compreensivelmente mais enfatizado e protegido. A liberdade é vista como condição fundamental para que se atinja a plenitude em todas as dimensões da vida, das relações familiares à atividade econômica. Dentro dessa perspectiva, a prioridade dos governos democráticos deve ser a de garantir e maximizar a possibilidade de escolha individual e de construção de modos de vida e valores diversos.
A segunda leitura entende ser insuficiente a garantia da liberdade formal em sociedades marcadas por fortes desigualdades sociais, como é o caso brasileiro. Historicamente, ela tende a ganhar força quando a democracia se estabiliza, evidenciando por seu próprio funcionamento o hiato entre igualdade jurídica e desigualdade econômica, entre liberdade de agir e capacidade de agir. Dentro dessa perspectiva, a prioridade dos governos democráticos deve ser a de construir políticas que reduzam as desigualdades entre as oportunidades de escolha efetiva que estão à disposição de diferentes grupos.
Embora complementares, essas duas dimensões têm sido tratadas em nosso atual debate político como sendo opostas ou mesmo inconciliáveis. Reeditando, superficial e caricaturalmente, uma antiga oposição entre modelos que se tornou muito mais complexa nas últimas décadas, esta postura tem gerado a retórica do nós contra eles que, sendo talvez útil para o imediatismo do marketing eleitoral, é profundamente danosa aos avanços do país no longo prazo. Em seu binarismo obtuso, ela inviabiliza a construção de projetos que ampliem a capacidade coletiva, porque se funda nas ideias equivocadas de que liberdade e igualdade não podem avançar juntas e de que a sociedade é um jogo de soma zero em que, para que alguns ganhem, é imperativo que outros percam.
Levado ao limite, este falso antagonismo arrisca deslizar da ideia de que a democracia não é suficiente para garantir esses valores para a ideia de que a democracia não é eficiente para garanti-los. A América Latina tem sido tristemente pródiga em exemplos dessa impaciência com a complexidade da vida democrática.
Como se viu claramente nas demonstrações de junho, essa falta de diálogo provoca reações que vão do desinteresse frente à vida política e da descrença nas instituições democráticas até a crença na violência como linguagem política legítima. A democracia não comporta nenhuma dessas alternativas.
Por isso, a importância das eleições desse ano vai muito além de seu resultado final. Em seu processo de construção, as campanhas podem optar pelo discurso fácil da desqualificação da diferença, do ufanismo arrogante ou do alarmismo absoluto, ou podem aceitar o desafio de, em nome de um país plural, sustentar projetos próprios sem fechar os olhos às virtudes das propostas alheias. O tipo de diálogo que se irá estabelecer entre os diferentes grupos será um indicativo de nossa maior ou menor capacidade de responder à tarefa urgente de renovar a democracia brasileira.

Texto publicado no Brasil Post em 29/01/2014, disponível em http://www.brasilpost.com.br/jose-garcez-ghirardi/renovar-a-democracia-bras_b_4633302.html

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